Por: AFC Custódio"Contou-me um narrador de estórias de assombração que, na Costa da Lagoa da Conceição da Ilha de Santa Catarina, em anos que já vão longe de nós, morou um pescador que possuía várias embarcações para os serviços de pesca, entre as quais, também uma lancha baleeira.
Balduíno da Prudência era o nome do pescador. Ele era um homem muito trabalhador e cuidadoso. Tratava com carinho suas embarcações e equipamentos de pesca, e mantinha o rancho onde guardava sempre fechado à chave.
Na manhã de uma sexta-feira, quando ele, acompanhado pelos seus camaradas, dirigindo-se para o rancho a fim de retirar as embarcações para ir à pescaria, encontrou a lancha molhada e com muita areia de praia espalhada sobre o fundo, o que causou grande surpresa a toda a tripulação, pois a haviam deixado enxuta e limpa, na véspera, ao recolherem-na para o interior do rancho.
Comentando e analisando o fato, eles chegaram à conclusão de que a maré daquela noite havia sido alta e, pela razão citada, não podiam encontrar nenhuma pegada na praia e, portanto, não havia vestígio para afirmarem que alguém havia retirado a lancha do rancho, mesmo porque as portas estavam fechadas à chave e, as quais encontravam-se em poder de seu dono. Por via das dúvidas, daquele dia em diante, o pescador passou a observar com muita atenção o estado da embarcação nas manhãs de sextas-feiras. Obteve resposta para seu matutamento e desconfiança, quando, na manhã, ao abrir o rancho para vistoriar sua embarcação, encontrou-a molhada e muito suja de areia.
Sabedor que era de que, naquele ano e naquele lugar, Lagoa da Conceição, as endiabradas e perigosas mulheres bruxas vinham desenvolvendo grandes atividades diabólicas contra as inocentes criancinhas da comunidade, chupando-lhes o sangue até dá-las à sepultura, zombando sarcasticamente das fortes rezas e bem urdidas armadilhas que se lhes preparavam. Toda a tripulação foi unânime em concordar com a desconfiança do velho pescador: aquele serviço só podia ser obra das temíveis mulheres bruxas.
Homem intrépido que era, acostumado a enfrentar fortes tempestades, frio, fome, sede e outras sensações diversas diariamente em sua árdua profissão de pescador artesanal, não titubeou em enfrentar mais um estranho caso que o destino lhe colocou frente a frente, como um desafio à sua coragem de indomável homem do mar. Sempre respeitou as coisas do outro mundo, nunca lhas tocou nem de leve com escárnio ou zombaria e, também, nunca duvidou da sua existência e atividades aqui neste mundo de sofrimentos e tributações várias.
Matutando, certo dia, ocorreu-lhe uma idéia de traçar um plano bem urdido para poder certificar-se verdadeiramente, se, de fato, eram as terríveis mulheres bruxas as autoras responsáveis por aqueles embustes que tanto o preocupavam. Traçou um plano tecnicamente muito louvável, que foi o seguinte: colocou uma taramela na porta da gaiuta da lancha, pela parte de dentro e, ao entardecer de uma sexta-feira, meteu-se dentro dela, fechou a porta por dentro com a taramela e aguardou o resultado dos acontecimentos.
Não tardou, havia passado alguns minutos, ele ouviu vozes estranhas de mulheres dentro do rancho e viu quando a porta foi aberta e a sua lancha arrastada para o mar, sobre as estivas que ele usava. Na porta da gaiuta ele havia feito um pequeno furo, de onde espiou e viu um, quadro horrível e descomunal. Nunca imaginado por ele, nem por nenhuma criatura humana. Viu, dentro de sua lancha, uma caterva de mulheres nuas de fisionomias horrendas, corpo disformes e esqueléticos, mãos com unhas pontiagudas, enfim, um quadro dantesco, sinistro e demoníaco.
A mulher bruxa que ocupou o lugar de patrão sobre o castelo de popa da lancha apresentava o corpo coberto de escamas negras e eriçadas, as unhas das mãos e dos pés eram feitas lanças e espadas. Os cabelos eram muito compridos e caíam pela popa da lancha espalhando-se sobre o mar, deixando no seu rastro um fogo de ardentia, de comprimento incalculável. Dos olhos, chamejavam dois fachos de luz que clareavam a frente da embarcação 8 grande distância. Cada banco da lancha estava ocupado por um monstro bruxólico que manejava o remo de voga. Quando iniciaram a viagem mar adentro, a misteriosa e agressiva bruxa-velha-chefe. que estava comandando a lancha, soltava gritos lancinantes enfurecidos. Esbravejava, pronunciando palavras de alerta às suas comandadas de que, dentro da embarcação, havia presença de um corpo humano, em estado natural:
- Aqui nesta embarcação está cheirando a sangue real!
A bruxa que estava sentada no banco da popa da lancha junto da gaiuta onde o pescador estava escondido, era comadre e prima dele. Ela sabia da presença dele ali, através do faro fadórico sobrenatural. Para protegê-la, todas as vezes que a temível bruxa-patrão esbravejava "está cheirando a sangue real nesta embarcação," ela respondia com todo vigor bruxólico para as suas colegas de sina demoníaca:
- Remem, suas éguas, e que cada remada avance uma légua, pois o galo branco já cantou e o amarelo já cacarejou.
Esta advertência para as colegas significava que deviam se esforçar para chegar ao lugar de destino e retornar sem serem molestadas pelo canto do galo preto, que significava, para a sina delas, o desencanto total. E assim, vencendo léguas por segundo em cada remada que davam, aportaram no lugar que haviam escolhido para levarem a cabo as suas sinistras diabruras e, dentro de pouco tempo, retornarem à lancha e viajarem em direção ao porto de saída. Assim, cumprindo à risca os projetos em questão, arquitetados, e muito bem arquitetados, porque os planos bruxólicos são autênticos, ao chegarem na praia desembarcaram, puxaram a lancha até meia maré e desapareceram.
O pescador, de dentro de seu esconderijo, observava com toda atenção e cuidado os movimentos delas, porém não conhecia os seus linguajares. verificando que estava livre de qualquer cilada por parte delas, abriu a porta da gaiuta, saltou de dentro da lancha, pôs olho de observação em volta do local e, com muita cautela, colocou um punhado de areia daquela praia dentro do bolso, colheu um ramo de rosas de um jardim de uma casa próxima dali e, rapidamente, recolheu-se ao seu esconderijo. Nem era passada uma fração de segundos, as endiabradas se apossaram novamente da lancha, ocupando seus devidos lugares e a soltaram mar afora.
Durante toda a viagem de ida e volta, a bruxa-patrão advertia, insistentemente, as suas comandadas, de que ela tinha plena certeza bruxólica de que, dentro daquela embarcação, havia presença de sangue real. A comadre do pescador, a bruxa que sabia da sua presença ali dentro da gaiuta, acompanhou a saída dele lá na praia onde desembarcaram e viu quando ele apanhou a areia e as flores. Durante toda a viagem de volta, quando a sua chefe esbravejava contra a presença de sangue real, ela a interrompia com muita segurança e habilidade: Remem, suas éguas, e que cada remada avance uma légua, pois os galos brancos e os amarelos já cantaram e os pretos já miúdaram.
E assim, com esses argumentos, ela defendeu o seu compadre e parente das unhas daquelas terríveis mulheres bruxas, mesmo porque também não podiam perder tempo à procura do sangue do pescador que se achava dentro da gaiuta. Ela sabia tão bem quanto todas as lições bruxólicas que haviam aprendido, quando calouras, de que, se fossem colhidas em estado fadórico pelo canto do galo preto, se desencantariam dentro da lancha, em pleno mar, e o pescador reconheceria todas quando apresentassem a sua nudez humana. E continuaram a viagem esbravejando, remando, desafiando a velocidade do tempo, até que chegaram ao porto de partida na Ilha de Santa Catarina, na Lagoa da Conceição.
Desembarcaram, abriram o rancho, recolheram a lancha dentro dele e desapareceram, num pealo, dos olhos do pescador.
O pescador, logo que se viu livre delas, apanhou a areia e as rosas que recolheu no porto onde elas o levaram e retirou-se para sua casa. No dia seguinte, ele tomou a areia e as rosas e passou a mostrá-la a toda gente da comunidade, na intenção de que alguém adivinhasse ou acertasse a procedência delas ou sua terra de origem. Não encontrou pessoa alguma que conseguisse dar uma opinião aproximada, pois nem ele mesmo era capaz de calcular onde esteve, levado por elas.
Certo dia, quando ele menos esperava, a bruxa, sua comadre apareceu em casa dele para visitar o afilhado. Ela mantinha uma amizade muito forte e íntima com uma de sua filhas, a Gracinda, que era uma moça casadoira e muito religiosa. Conversa vai e conversa vem, ele chegou até a comentar com ela o fato desagradável que com ele acontecera e que muito o impressionara.
- Comadre, eu estive num lugar muito longe, dentro da noite, e, às apalpadelas, dentro da escuridão, consegui recolher um punhado de areia e umas rosas, porém desconheço o lugar de sua origem. Já as mostrei a muita gente e ninguém, assim como eu mesmo, conseguiu identificá-las. - Quando ela colocou os olhos por riba da areia e das rosas, suas faces enrubesceram, seus olhos se esgazearam e sua fala emudeceu. Recuperando-se, ela afirmou - Compadre, a terra de origem deste punhado de areia e deste ramalhete de rosas é a Índia. Eu aprendi na minha escola de iniciação à bruxaria que lá, nos Açores, na terra dos nossos antepassados, as bruxas também costumavam roubar embarcações e fazerem estas viagens extraordinárias entre as ilhas e a Índia, em escassos minutos marcados pelos relógios do tempo. Também aqui as mulheres continuadoras dos elementos diabólicos do reino de Satanás, cujas chefes enfeixam em suas mãos os poderes emanados Dele, praticam as mesmas peripécias. Eu, compadre, afirmo-lhe com convicção certa de que as suas vidas, naqueles momentos, estiveram guardadas no repositório das minhas mãos. A bruxa-chefe, que comandava a embarcação, tinha plena certeza da presença real de sangue humano dentro da lancha e, de vez em quando, ela chamava a atenção de suas comandadas para que investigassem onde estava o elemento que o possuía. Mas eu procurei sempre com muita altivez e precisão bruxólica, atraí-las para pontos distantes que podiam atrapalhar nossa viagem, quais eram os cantares dos galos. Hoje o senhor vai saber com precisão que, dentro da sua embarcação, fazendo aquela viagem bruxólica entre.a Ilha de Santa Catarina e a Índia, estavam as mulheres bruxas mais respeitáveis, misteriosas, prepotentes e malignas que vivem o reino rubro do rei Anjo Lúcifer. Se o senhor não foi trucidado por elas, agradeça à minha presença na sua lancha, metamorfoseada em bruxa, sentada no banco de popa na frente da gaiuta, onde se achava escondido.
Ela declarou-se bruxa para o compadre e acusou-se de estar chupando o sangue do filho dele, seu próprio afilhado de batismo, e denunciou todas as demais, inclusive a chefe do bando que encetara aquela viagem.
O velho pescador ficou atarantado e, num repente, correu até a cozinha, apanhou um rabo de tatu que estava no fumeiro, aplicou-lhe uma boa surra de repreensão por riba do corpo e salgou as feridas do desencanto com sal e pimenta, do desespero que ele via no amargar do empresamento do seu filhinho.
Muitas. vezes - pensou consigo mesmo o audaz pescador - escutei conversas em ajuntamento de pessoas, no inverno, aquecendo-se ao pé do fogo de fogão de trempo de ferro, em cozinhas de assoalho de chão batido, de que as mulheres bruxas açorianas eram temidas pelo povo das ilhas, devido às práticas de suas más-artes.
"Depois da tremenda refrega demoníaca que ganhei, sem atinar porque carga de pecado cometido, de uma coisa tenho plena certeza: quem me defendeu das unhas carniceiras daquelas megeras éguas bruxas foi o meu breve milagroso, que carrego sobre o peito, desde o tempo da minha bisavó Lucreça, que era uma exímia benzedeira curandeira e que fez parte das levas de colonos que viajaram amontoados dentro de porões fétidos de barcos veleiros, na santa esperança de se radicarem aqui nesta Ilha de Santa Catarina e viverem melhores dias na santa paz do senhor, já que a sua terra natal só podia oferecer-lhes misérias econômicas, minguadas e escassas." Franklin Cascaes